Por uma Universidade de Polícia com feições humanísticas[1]
A adoção do conceito Corporate University pela Polícia
Militar do Estado de São Paulo – PMESP é iminente. No entanto, a Universidade
de Polícia não deve almejar ser apenas uma fábrica
melhorada de policiais tecnicamente perfeitos: ela pode e deve possuir uma
feição humanística para que a Instituição continue a humanizar suas relações
internas e os serviços que oferece. Com sua Universidade, a PMESP terá em breve
a oportunidade de trazer para seus alunos mais conteúdos das humanidades – e
continuamente – pois, afinal, o homem
não nasce homem, ele se torna homem.
O
que há em comum entre o trabalho da polícia preventiva e ostensiva composta
pelos militares estaduais, absorvidos inteiramente pelas emergências do
telefone 190, preocupados com a segurança, rapidez e legalidade de cada providência,
empenhados em obter o melhor da tecnologia para seu trabalho arriscado, e as
acadêmicas ciências humanas e suas empoeiradas frases latinas?
Para
quem está surpreso, lembramos que esta pergunta se impõe em um acelerado quadro
de mudanças na área de ensino da Instituição: Lei Complementar Estadual nº 1036
de 11Jan08, Lei de Ensino da Instituição, sua regulamentação pelo Decreto
Estadual nº 54.911 de 14Out09 e edição da D-5-PM – Diretriz Geral de Ensino em
22Abr10, que determina a redação dos Regimentos Internos dos recém-promovidos
órgãos de ensino superior da Polícia Militar do Estado de São Paulo - PMESP.
No
epicentro destas mudanças está o Centro de Altos Estudos de Segurança – CAES
"Cel PM Nelson Freire Terra" que passa a oferecer o curso de Mestrado
e Doutorado em Ciências Policias de Segurança com vocação – adiável, mas
incontornável – para buscar, depois do já conquistado reconhecimento de seus
cursos superiores e de pós-graduação pelo Estado de São Paulo, sua consagradora
recomendação pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior –
CAPES, o órgão federal responsável pela avaliação da pós-graduação no Brasil e
pela promoção da cooperação científica internacional.
Trata-se
de uma movimentação sem precedentes nos 180 anos da polícia fardada de São
Paulo, desde a vinda das duas Missões Estrangeiras da França para
profissionalizar a Força Pública. No entanto, nas últimas décadas a situação do
ensino militar espelhava, de resto, a realidade de toda a sociedade brasileira:
ano após ano, este ensino permanecia preso ao modelo tradicional restrito à
transmissão de conhecimentos estabelecidos. Como estes conhecimentos eram pouco
alterados, à exceção de algumas disciplinas propriamente policiais introduzidas
nos anos 80, sua transmissão aproximava-se perigosamente de uma repetição
burocrática quebrada apenas pela disputa entre alunos pelas melhores notas como
em um jogo em que o conteúdo importa menos.
Este modelo fora consagrado em 02Jul69
pelo Decreto-Lei Federal 667 que organizou as Polícias Militares e os Corpos de
Bombeiros Militares dos Estados como órgãos militares auxiliares e controlados
pelas Forças Armadas e os estruturou em órgãos de Direção, Execução e Apoio.
Estrutura que foi preenchida pelo Decreto Estadual 7.290 de 15Dez75 que
estabeleceu que a Academia de Policia Militar (APM), a Escola de Educação
Física (EEF), O Centro
de Formação e Aperfeiçoamento de Praças (CFAP) e suas unidades subordinadas, a
Escola de Formação e Aperfeiçoamento de Graduados (EsFAG), Escola de Especialização
de Praças (EsEP) e Núcleos de Formação de Soldados (NFSd), eram todos órgãos de
Apoio de Ensino.
Ao designar os órgãos de ensino como órgãos de apoio segregando-os dos órgãos
de direção e dos órgãos de execução, este decreto repetia e reforçava uma noção
arquetípica do ensino como preparação para a vida (então o estudo é anterior ou
está fora da vida real), como transmissão de conhecimento acumulado pelas
gerações anteriores (então o conhecimento tradicional é suficiente), estudo e
exercícios de alunos supervisionados por professores em uma relação vertical
(então o ensino e aprendizado é fundado na autoridade pessoal ou na
superioridade hierárquica do professor) e ignorava completamente a
possibilidade de um órgão militar pesquisar e desenvolver horizontalmente
conhecimentos com rigor científico e acadêmico na área de segurança
pública.
Esta
maneira antiga de pensar o ensino é bem traduzida nos quartéis pelo sentido
literal e plástico do conceito de formação:
recebe-se um candidato aprovado em concurso e este sai das escolas militares formado, ou seja, moldado, e pronto para
o serviço (então aparência importa mais que a essência). Aqui também está
implícita a imagem bélica ou industrial de uma linha de produção que joga
sempre novos recrutas da retaguarda para a linha de frente, a real vanguarda
onde as coisas acontecem, onde os problemas são resolvidos.
Mas
desde as primeiras discussões em 2007, na então Diretoria de Ensino, sobre o
que veio a ser a Lei de Ensino, a Polícia Militar toma iniciativas que têm sido
acolhidas integralmente pelo Executivo e pelo Legislativo paulista que enfim
misturam o ensino à pesquisa e esta diretamente ao teste das ruas (então órgãos
de ensino e execução estão todos na vanguarda e ensinar, aprender e pesquisar é
estar na linha de frente. Um Aluno-Soldado ou Aluno-Oficial podem escrever um
Trabalho de Conclusão de Curso – TCC inovador), que horizontaliza a relação
professor-aluno colocando foco na produção de soluções de segurança pública
(então a autoridade é do melhor argumento, não da pessoa) e que transformam a
Instituição, que era objeto de pesquisa de terceiros, em órgão protagonista que
produz pesquisas sobre si mesmo e sobre os problemas de manutenção da ordem e
segurança pública brasileira incorporando crescentemente boas práticas
acadêmicas e coloca na ordem do dia sua responsabilidade em fazer avançar com
urgência os conhecimentos que nomeia agora como Ciências Policiais de Segurança
e Ordem Pública.
Ocorre
que as leis e normas de ensino são recentes demais para que seus efeitos sejam
sentidos. Diríamos mesmo que é moderna demais para ser completamente
compreendida pela maioria formada nos
moldes antigos, e ainda causa enorme estranheza entre nossas fileiras o estudo
das ciências humanas, as humanidades (apesar
da Lei de Ensino tratar de “conhecimentos humanísticos” e prever “pesquisas
humanísticas”), que têm a fama de ser pura elucubração de idéias sem interesse
para a instituição policial.
No
entanto, a despeito dos textos das humanidades estarem aparentemente distantes da realidade operacional do policiamento, é
preciso ter olhos para o fato de que as decisões que moldam esta realidade
prática são idéias assumidas como verdades, conscientes ou não, ou resultantes
de discussões conceituais, igualmente
fundadas em ideias.
A
PMESP tem forte tradição de estudos jurídicos – denunciados hoje como resultado
de uma cultura bacharelista – que começam a ceder espaço para um articulado
pensamento administrativo de Gestão Estratégica visando resultados suportados
por alta tecnologia de informação. Mas a este sopro renovador, estudiosos das
humanidades – que não exercem poder algum de bacharel, afinal não dirigem
escritórios de interesses e apenas lecionam – poderiam agregar aprofundamento
teórico fazendo as questões técnicas de segurança pública se enraizarem em
arcabouço conceitual concebido por autores de maior e mais antiga autoridade,
nomes conhecidos e respeitados pela sociedade, imprensa e meio intelectual; os
estudos das humanidades atualizariam conceitualmente textos fundamentais da
comunicação interna e com a sociedade; sincronizariam os termos e parâmetros de
importantes debates no meio policial-militar com os mesmos termos e parâmetros
do meio acadêmico; revitalizariam com novos materiais conhecidas questões éticas
e dariam visibilidade a outras menos discutidas; modernizariam e refinariam a
linguagem com que se trata de problemas humanos que estão por toda parte em um
órgão policial que presta serviços essenciais a seres humanos empregando basicamente recursos humanos.
Mas,
sobretudo, os conteúdos oferecidos pelas humanidades tornam mais preciso e
penetrante o pensamento sobre nossas condições humanas de trabalho policial e
da nossa relação com o atual cidadão-cliente e assim poderiam colaborar
extraordinariamente para a valorização do policial militar e sua profissão.
Isto porque, resumidamente, as humanidades são o manancial dos argumentos e
discursos mais fortes e persuasivos da tradição de debates sobre assuntos e problemas humanos.
Os
atuais concursos terceirizados para ingresso na PMESP já não exigem
conhecimentos de física, química e outros semelhantes e valorizam a filosofia,
história, sociologia e outras disciplinas das humanidades, então é o momento de
despertar para os novos tempos que se configuram para vencer entre nós o
preconceito contra as ciências humanas como área que não interessam ao trabalho
policial, pois isto é um velho engano: os grandes investimentos em armas,
viaturas, comunicação e processamento de informações têm um limite na sua
capacidade de melhorar a qualidade do serviço policial.
Até
mesmo a mais eficiente formação e treinamento profissional não garante que a
técnica adquirida seja usada em prol da sociedade. Alguém duvida que um método
de tiro, de defesa pessoal ou mesmo um Procedimento Operacional Padrão – POP
possa ser usado contra os próprios policiais? Que recursos tecnológicos possam
ser desvirtuados dos seus fins? Esta séria consideração dá relevo à urgente
necessidade de que nossas escolas policiais ofereçam então, além das matérias
profissionais, uma formação humanística.
Não
basta que a PMESP como empregadora inclua no mercado de trabalho um candidato
aprovado; ofereça-lhe um papel na sociedade; um know-how para a solução de problemas técnico-operacionais;
integre-o a uma rede de proteção social; envolva-o com direitos e deveres de um
segundo aparato jurídico, a justiça militar, mas não faça esforços para
incluí-lo, integrá-lo, torná-lo mais partícipe da humanidade. É preciso lembrar que o homem não nasce pronto como os
animais, o homem torna-se homem e não basta para a PMESP a formação humanística
trazida de casa e da escola e reforçada pela religião; este aprendizado nas humanidades deve ser contínuo e então
deve continuar dentro da PMESP.
Não
são suficientes equipamentos, conhecimentos técnicos e controles punitivos: é o
esforço contínuo do ensino (então entendido como educação) que permitirá que o policial militar veja melhor a si
mesmo e aos outros como seres humanos e que poderá garantir mais que este atue
com humanidade.
Obrigado pela
leitura. Se reproduzir total ou parcialmente este texto, peço apenas que cite a
fonte.
[1] O autor é Tenente-Coronel
da Policia Militar do Estado de São Paulo, bacharel em Ciências Policiais de
Segurança e Ordem Pública pela Academia de Polícia Militar do Barro Branco
(APMBB), Mestre em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública pelo Centro
de Altos Estudos de Segurança “Cel PM Nelson Freire Terra” (CAES), graduado em
Filosofia, Mestre e Doutor em Ética e Filosofia Política pela USP (2010) depois
de ter estudado como bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (CAPES) na França 2008/2009.. Atualmente é doutorando em
Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública pelo CAES e comandante do 17ª
BPM/M. Email: lucion@policiamilitar.sp.gov.br.
Nenhum comentário:
Postar um comentário