domingo, 16 de setembro de 2012

Por uma Universidade de Polícia com feições humanísticas


Por uma Universidade de Polícia com feições  humanísticas[1]
                           
A adoção do conceito Corporate University pela Polícia Militar do Estado de São Paulo – PMESP é iminente. No entanto, a Universidade de Polícia não deve almejar ser apenas uma fábrica melhorada de policiais tecnicamente perfeitos: ela pode e deve possuir uma feição humanística para que a Instituição continue a humanizar suas relações internas e os serviços que oferece. Com sua Universidade, a PMESP terá em breve a oportunidade de trazer para seus alunos mais conteúdos das humanidades – e continuamente –  pois, afinal, o homem não nasce homem, ele se torna homem. 

O que há em comum entre o trabalho da polícia preventiva e ostensiva composta pelos militares estaduais, absorvidos inteiramente pelas emergências do telefone 190, preocupados com a segurança, rapidez e legalidade de cada providência, empenhados em obter o melhor da tecnologia para seu trabalho arriscado, e as acadêmicas ciências humanas e suas empoeiradas frases latinas?
Para quem está surpreso, lembramos que esta pergunta se impõe em um acelerado quadro de mudanças na área de ensino da Instituição: Lei Complementar Estadual nº 1036 de 11Jan08, Lei de Ensino da Instituição, sua regulamentação pelo Decreto Estadual nº 54.911 de 14Out09 e edição da D-5-PM – Diretriz Geral de Ensino em 22Abr10, que determina a redação dos Regimentos Internos dos recém-promovidos órgãos de ensino superior da Polícia Militar do Estado de São Paulo - PMESP.
No epicentro destas mudanças está o Centro de Altos Estudos de Segurança – CAES "Cel PM Nelson Freire Terra" que passa a oferecer o curso de Mestrado e Doutorado em Ciências Policias de Segurança com vocação – adiável, mas incontornável – para buscar, depois do já conquistado reconhecimento de seus cursos superiores e de pós-graduação pelo Estado de São Paulo, sua consagradora recomendação pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, o órgão federal responsável pela avaliação da pós-graduação no Brasil e pela promoção da cooperação científica internacional.
Trata-se de uma movimentação sem precedentes nos 180 anos da polícia fardada de São Paulo, desde a vinda das duas Missões Estrangeiras da França para profissionalizar a Força Pública. No entanto, nas últimas décadas a situação do ensino militar espelhava, de resto, a realidade de toda a sociedade brasileira: ano após ano, este ensino permanecia preso ao modelo tradicional restrito à transmissão de conhecimentos estabelecidos. Como estes conhecimentos eram pouco alterados, à exceção de algumas disciplinas propriamente policiais introduzidas nos anos 80, sua transmissão aproximava-se perigosamente de uma repetição burocrática quebrada apenas pela disputa entre alunos pelas melhores notas como em um jogo em que o conteúdo importa menos.
Este modelo fora consagrado em 02Jul69 pelo Decreto-Lei Federal 667 que organizou as Polícias Militares e os Corpos de Bombeiros Militares dos Estados como órgãos militares auxiliares e controlados pelas Forças Armadas e os estruturou em órgãos de Direção, Execução e Apoio. Estrutura que foi preenchida pelo Decreto Estadual 7.290 de 15Dez75 que estabeleceu que a Academia de Policia Militar (APM), a Escola de Educação Física (EEF), O Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças (CFAP) e suas unidades subordinadas, a Escola de Formação e Aperfeiçoamento de Graduados (EsFAG), Escola de Especialização de Praças (EsEP) e Núcleos de Formação de Soldados (NFSd), eram todos órgãos de Apoio de Ensino.
Ao designar os órgãos de ensino como órgãos de apoio segregando-os dos órgãos de direção e dos órgãos de execução, este decreto repetia e reforçava uma noção arquetípica do ensino como preparação para a vida (então o estudo é anterior ou está fora da vida real), como transmissão de conhecimento acumulado pelas gerações anteriores (então o conhecimento tradicional é suficiente), estudo e exercícios de alunos supervisionados por professores em uma relação vertical (então o ensino e aprendizado é fundado na autoridade pessoal ou na superioridade hierárquica do professor) e ignorava completamente a possibilidade de um órgão militar pesquisar e desenvolver horizontalmente conhecimentos com rigor científico e acadêmico na área de segurança pública. 
Esta maneira antiga de pensar o ensino é bem traduzida nos quartéis pelo sentido literal e plástico do conceito de formação: recebe-se um candidato aprovado em concurso e este sai das escolas militares formado, ou seja, moldado, e pronto para o serviço (então aparência importa mais que a essência). Aqui também está implícita a imagem bélica ou industrial de uma linha de produção que joga sempre novos recrutas da retaguarda para a linha de frente, a real vanguarda onde as coisas acontecem, onde os problemas são resolvidos.
Mas desde as primeiras discussões em 2007, na então Diretoria de Ensino, sobre o que veio a ser a Lei de Ensino, a Polícia Militar toma iniciativas que têm sido acolhidas integralmente pelo Executivo e pelo Legislativo paulista que enfim misturam o ensino à pesquisa e esta diretamente ao teste das ruas (então órgãos de ensino e execução estão todos na vanguarda e ensinar, aprender e pesquisar é estar na linha de frente. Um Aluno-Soldado ou Aluno-Oficial podem escrever um Trabalho de Conclusão de Curso – TCC inovador), que horizontaliza a relação professor-aluno colocando foco na produção de soluções de segurança pública (então a autoridade é do melhor argumento, não da pessoa) e que transformam a Instituição, que era objeto de pesquisa de terceiros, em órgão protagonista que produz pesquisas sobre si mesmo e sobre os problemas de manutenção da ordem e segurança pública brasileira incorporando crescentemente boas práticas acadêmicas e coloca na ordem do dia sua responsabilidade em fazer avançar com urgência os conhecimentos que nomeia agora como Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública.
Ocorre que as leis e normas de ensino são recentes demais para que seus efeitos sejam sentidos. Diríamos mesmo que é moderna demais para ser completamente compreendida pela maioria formada nos moldes antigos, e ainda causa enorme estranheza entre nossas fileiras o estudo das ciências humanas, as humanidades (apesar da Lei de Ensino tratar de “conhecimentos humanísticos” e prever “pesquisas humanísticas”), que têm a fama de ser pura elucubração de idéias sem interesse para a instituição policial.
No entanto, a despeito dos textos das humanidades estarem aparentemente distantes da realidade operacional do policiamento, é preciso ter olhos para o fato de que as decisões que moldam esta realidade prática são idéias assumidas como verdades, conscientes ou não, ou resultantes de discussões conceituais, igualmente fundadas em ideias.  
A PMESP tem forte tradição de estudos jurídicos – denunciados hoje como resultado de uma cultura bacharelista – que começam a ceder espaço para um articulado pensamento administrativo de Gestão Estratégica visando resultados suportados por alta tecnologia de informação. Mas a este sopro renovador, estudiosos das humanidades – que não exercem poder algum de bacharel, afinal não dirigem escritórios de interesses e apenas lecionam – poderiam agregar aprofundamento teórico fazendo as questões técnicas de segurança pública se enraizarem em arcabouço conceitual concebido por autores de maior e mais antiga autoridade, nomes conhecidos e respeitados pela sociedade, imprensa e meio intelectual; os estudos das humanidades atualizariam conceitualmente textos fundamentais da comunicação interna e com a sociedade; sincronizariam os termos e parâmetros de importantes debates no meio policial-militar com os mesmos termos e parâmetros do meio acadêmico; revitalizariam com novos materiais conhecidas questões éticas e dariam visibilidade a outras menos discutidas; modernizariam e refinariam a linguagem com que se trata de problemas humanos que estão por toda parte em um órgão policial que presta serviços essenciais a seres humanos empregando basicamente recursos humanos.
Mas, sobretudo, os conteúdos oferecidos pelas humanidades tornam mais preciso e penetrante o pensamento sobre nossas condições humanas de trabalho policial e da nossa relação com o atual cidadão-cliente e assim poderiam colaborar extraordinariamente para a valorização do policial militar e sua profissão. Isto porque, resumidamente, as humanidades são o manancial dos argumentos e discursos mais fortes e persuasivos da tradição de debates sobre assuntos e problemas humanos.
Os atuais concursos terceirizados para ingresso na PMESP já não exigem conhecimentos de física, química e outros semelhantes e valorizam a filosofia, história, sociologia e outras disciplinas das humanidades, então é o momento de despertar para os novos tempos que se configuram para vencer entre nós o preconceito contra as ciências humanas como área que não interessam ao trabalho policial, pois isto é um velho engano: os grandes investimentos em armas, viaturas, comunicação e processamento de informações têm um limite na sua capacidade de melhorar a qualidade do serviço policial.
Até mesmo a mais eficiente formação e treinamento profissional não garante que a técnica adquirida seja usada em prol da sociedade. Alguém duvida que um método de tiro, de defesa pessoal ou mesmo um Procedimento Operacional Padrão – POP possa ser usado contra os próprios policiais? Que recursos tecnológicos possam ser desvirtuados dos seus fins? Esta séria consideração dá relevo à urgente necessidade de que nossas escolas policiais ofereçam então, além das matérias profissionais, uma formação humanística.
Não basta que a PMESP como empregadora inclua no mercado de trabalho um candidato aprovado; ofereça-lhe um papel na sociedade; um know-how para a solução de problemas técnico-operacionais; integre-o a uma rede de proteção social; envolva-o com direitos e deveres de um segundo aparato jurídico, a justiça militar, mas não faça esforços para incluí-lo, integrá-lo, torná-lo mais partícipe da humanidade. É preciso lembrar que o homem não nasce pronto como os animais, o homem torna-se homem e não basta para a PMESP a formação humanística trazida de casa e da escola e reforçada pela religião; este aprendizado nas humanidades deve ser contínuo e então deve continuar dentro da PMESP.
Não são suficientes equipamentos, conhecimentos técnicos e controles punitivos: é o esforço contínuo do ensino (então entendido como educação) que permitirá que o policial militar veja melhor a si mesmo e aos outros como seres humanos e que poderá garantir mais que este atue com humanidade.


Obrigado pela leitura. Se reproduzir total ou parcialmente este texto, peço apenas que cite a fonte.



[1] O autor é Tenente-Coronel da Policia Militar do Estado de São Paulo, bacharel em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública pela Academia de Polícia Militar do Barro Branco (APMBB), Mestre em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública pelo Centro de Altos Estudos de Segurança “Cel PM Nelson Freire Terra” (CAES), graduado em Filosofia, Mestre e Doutor em Ética e Filosofia Política pela USP (2010) depois de ter estudado como bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) na França 2008/2009.. Atualmente é doutorando em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública pelo CAES e comandante do 17ª BPM/M. Email: lucion@policiamilitar.sp.gov.br.

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